=Posts Recentes

[5]

Mateus 7:1-6 contra a hermenêutica da conveniência


Todo cristão sabe que a Bíblia ocupa um papel central em nosso credo. É por meio dela que somos informados a respeito da revelação de Deus. Ainda que muitos queiram diminuir a importância da Palavra a um papel secundário, reduzindo-a a mera literatura clássica, entendemos que ela é bem mais que isso, ela é a nossa regra de fé e prática.

Naturalmente que, se temos um livro como fonte doutrinária, é de extrema importância que empreendamos um esforço para alcançar e preservar sua correta interpretação. É por esse motivo que existem tantos eruditos que dedicam suas vidas a disciplinas como exegese e hermenêutica bíblica. Entender um texto sem ignorar quesitos importantes como contexto textual, época, destinatário, pressupostos e motivos do autor, etc é uma tarefa que demanda dedicação e estudo. Isso vai muito além daquilo que Mortimer J. Adler e Charles Van Doren (2010) chamam de "leitura inspecional".

Porém, é grande o número de cristãos que não atentam para isso. Ignoram completamente a necessidade de uma leitura mais atenta e se mantêm na superfície do texto, ou pior, confiam em qualquer interpretação que aparece. Tornando-se assim massa de manobra daqueles que usam o texto bíblico ao seu bel-prazer. A consequência dessa atitude é que alguns textos passaram a ser popularmente utilizados como se dissessem algo que não dizem.

O texto de Mateus 7:1,2 é um desses casos — talvez o mais emblemático deles. Não é de hoje que vemos pessoas se escondendo atrás desse trecho para cometer todo tipo de absurdo. Afinal, você pode fazer o que quiser e, em caso de uma repreensão, basta dizer que "não devemos julgar".

O argumento é quase onipresente. Ele está na boca tanto daqueles que o utilizam para abrandar suas falhas quanto dos que visam encobrir falhas alheias. Basta que alguém se levante contra uma prática que é, muitas vezes, condenada pela própria Escritura para que surja alguém dizendo: "não faça isso! Não devemos julgar o próximo.". Mas será que era isso que Jesus queria dizer quando proferiu as palavras registradas por Mateus? Será que Jesus estava nos dizendo que não devemos nos posicionar diante de erros flagrantes? Qual o limite do julgamento imposto por Cristo?

Para responder a esses questionamentos, precisamos ler atentamente o texto de Mateus 7, do versículo 1 ao 6. Vejamos:
1) Não julgueis, para que não sejais julgados, 2) porque com o juízo com que julgardes sereis julgados, e com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós. 3) E por que reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão e não vês a trave que está no teu olho? 4) Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no teu? 5) Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e, então, cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão. 6) Não deis aos cães as coisas santas, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas; para que não as pisem e, voltando-se, vos despedacem.
Jesus profere essas palavras durante o seu discurso que ficou conhecido como "Sermão da Montanha". Após tratar de vários temas inerentes ao Seu Reino e à Sua Justiça, o Mestre, já caminhando para a conclusão passa a falar sobre o julgamento. Cristo desafia seus ouvintes ao demonstrar que não deveriam julgar aos outros com uma medida diferente da que usavam para julgar a si mesmos.

O que Jesus está proibindo aqui não é o julgamento em si, mas o julgamento hipócrita. O ponto central não é o mero julgamento, mas sim aquele que é feito sem que primeiro haja uma autoanálise por parte de quem julga. Nenhum de nós pode julgar o próximo sem que primeiro tenha submetido sua vida ao mesmo crivo que quer impôr ao outro. E essa era a atitude dos fariseus, que são o principal alvo da crítica que Cristo está fazendo; esses tinham por hábito julgar os outros para que pudessem se exaltar (Lc 18:9-14), o Mestre está invertendo esta ação e dizendo que, na verdade, devemos primeiro julgar a nós mesmos para ajudar a corrigir e, assim, exaltar o próximo. Somente após esta análise pessoal e sua devida correção — que é o que Jesus chama de "tirar a trave", é que estaremos aptos a avaliar os atos dos outros.

O ensinamento prossegue e o Senhor deixa claro que, uma vez tirada a trave dos nossos olhos, é nossa a tarefa de tirar o argueiro do olho do nosso semelhante. E é exatamente essa parte que muitos têm ignorado: tirar a trave dos nossos olhos é importante, mas o ensino de Cristo só estará sendo cumprido à risca se, uma vez enxergando de forma devida, nós nos valermos desta condição para fazer com que outros também enxerguem corretamente. Ora, como poderíamos tirar o argueiro do olho de alguém se nos fosse proibida a possibilidade de julgá-lo? Seria o mesmo que pedir a um médico que verificasse se determinado paciente possui alguma doença mas o proibisse de fazer os exames devidos.

Cabe então, nesta primeira parte, deixar claro que o julgamento ao próximo só pode ser feito apos uma autoanálise. Autoanálise esta que deve ser feita com temor e equilíbrio — requisitos que também devem estar presentes no julgamento alheio.

No versículo 6 — geralmente ignorado por aqueles que querem dar um significado ao texto diverso do que ele realmente diz, Jesus torna o discurso ainda mais incisivo: ao fazer a comparação com os cães e porcos, Ele deixa claro que o julgamento é importante. De que outra forma poderemos discernir quem são as pessoas enquadradas nessa classificação? É evidente que Jesus aqui está falando de pessoas que não dão o devido valor a tudo que se refere a Ele.

Concluímos portanto que Jesus não nos proíbe de julgar. Não é disso que o texto trata. O Senhor está, na verdade, convidando seus leitores a, em primeiro lugar, julgarem a si mesmos e rever seus erros. E, em seguida, julgar os outros para corrigi-los de igual modo.

A igreja brasileira não pode abrir mão de seu julgamento. O número de lobos é cada vez maior em torno das ovelhas e abrir mão dessa prerrogativa seria o mesmo que atar as mãos diante disso. São esses mesmos lobos que querem calar a todos dizendo que não devemos julgar. É a hermenêutica da conveniência tentando triunfar sobre os desatentos. Não nos calaremos diante deles.

Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto, sede prudentes como as serpentes e símplices como as pombas. (Mateus 10:16)


Mateus 7:1-6 contra a hermenêutica da conveniência Mateus 7:1-6 contra a hermenêutica da conveniência Reviewed by Alcino Júnior on segunda-feira, dezembro 11, 2017 Rating: 5

Nenhum comentário: